Por: Fábio Cervone, colunista do R7
A história relata que muitos regimes autoritários viram seus dias contados ao enfrentar a fúria descontrolada do povo nas ruas. Também é verdade que movimentos religiosos, como, por exemplo, o protestantismo na Europa dos séculos 16 e 17, foram decisivos para o progresso das instituições políticas ocidentais. Mas não se engane facilmente com os exemplos pontuais do passado. Na realidade, os papéis da violência e da fé espiritual na formação e no desenvolvimento das democracias modernas deveriam ser marginais, quiçá imperceptíveis. Mas não é bem isso o que estamos vendo no mundo.
A crise política enfrentada atualmente pela sociedade egípcia não poderia ser mais emblemática para se compreender os perigos que representa a mistura entre intolerância, violência e religião numa democracia em vigor ou em construção - como é o caso do Egito. O que levou o país para o cenário atual de incerteza e insegurança está diretamente ligado às atitudes dos dois grupos que detêm em suas mãos a maior parcela de poder nacional. Tanto os militares quanto a Irmandade Muçulmana não souberam promover o diálogo e a permeabilidade necessários numa sociedade plural. Isto, como se vê, acarretou em uma descontrolada insatisfação e revolta civil.
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Há poucos dias, a emissora CNN apresentou um programa em que uma ativista da Irmandade e um apoiador dos militares deveriam debater. Na ocasião, não houve qualquer conversa produtiva, mas o comportamento dos dois convidados foi revelador e pode ser entendido como uma caricatura dos sintomas mais problemáticos da política nacional do Egito. Por alguns minutos, os lados trocaram agressivas acusações. Por vezes, eles impediram grosseiramente a fala do adversário. E, claramente, ouviam somente as próprias vozes e ideias.
Diante da falta de educação (elegância) e disposição para cooperar adequadamente, a mediadora da emissora teve dificuldades para acalmar os ânimos dos debatedores e, sem que conseguisse esclarecer suas dúvidas, a jornalista acabou encerrando o quadro. É exatamente assim que agiram nos últimos meses os líderes do país árabe-africano: cada qual tentou se sobrepor arbitrariamente ao adversário.
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Paralelamente, boa parte do povo ficou em segundo plano assistindo ao embate sem compreender ao certo o que estava acontecendo. Depois de tudo, a população agora corre o risco de perder muito dos avanços conquistados com a destruição da ditadura de Hosni Mubarak, que comandou o país entre 1981 e 2011.
Os dois principais atores hegemônicos do Egito (Forças Armadas e Irmandade Muçulmana) possuem razões de sobra para exigirem explicações dos rivais e defenderem seus últimos atos. De um lado, os militares acusam o partido Liberdade e Justiça, braço político da Irmandade, de promover um governo de viés excessivamente religioso, centralizar os poderes nacionais, ignorar as demandas populares e, ainda, incitar a violência de seus ativistas contra a ordem pública.
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Os islamitas, por sua vez, criticaram a legitimidade das novas ações autoritárias do Exército dentro do recém-implementado sistema democrático, a começar pelo golpe militar de 3 de julho, que derrubou o presidente eleito Mohamed Mursi. Além disso, eles lutam para não serem condenados à ilegalidade, e tentam ainda denunciar a agressividade indiscriminada da repressão policial contra seus simpatizantes nas ruas, na mídia e na Justiça.
Sem dúvida, estas e outras condutas similares são justificativas plausíveis para se colocar em questão todo o processo de abertura política e reforma social proposto inicialmente pelas forças dominantes do Egito. Mas a constatação destes e outros obstáculos para o avanço da democracia local não pode servir como pretexto para o endurecimento dos atritos. Pelo contrário, uma sociedade que busca a maturidade das instituições públicas precisa resolver suas divergências por meio da negociação, e não pelo “vida ou morte”. Em um contexto democrático, os atores devem flexibilizar suas posturas, além de mostrar disposição em ceder e adaptar-se momentaneamente a novas situações, em consideração ao interesse coletivo.
Sem a Irmandade nas mesas de negociação, neste momento estratégico de reconstrução nacional, como indicam as últimas medidas dos militares, nenhuma decisão de interesse comum será verdadeiramente eficaz e plural. Paralelamente, os grupos religiosos precisam evitar a tentação de transformar o Estado em palanque de pregação e doutrinação. Também não devem apelar para os argumentos divinos/sobrenaturais para mobilizar e sensibilizar a opinião pública.
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